Foi um dos dias mais quentes e secos do ano. Quando os carros passavam, levantavam uma nuvem de poeira da estrada de terra batida, tingindo de marrom os arbustos do caminho.
Acervo Notícias da Pecuária
Cenário abafado, principalmente quando vinha à mente a imagem do que, em dias pr?-estiagem, foi uma imensidão de água doce. Os níveis estavam baixos nas represas de Piracaia (SP), cidade a 90 km de São Paulo, cujos reservatórios integram o Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de mais de 8 milhões de paulistanos.
Parece impossível colher legumes e verduras em um cenário tão seco quanto aquele. As sementes plantadas não resistiram ao calor intenso e à falta de chuva. Dali restaram-se apenas umas folhas de bananeira e de taioba que, resistem e teimam em se manter vivas em situações climáticas adversas.?
As folhas de bananeira embalariam os peixes da região assados na brasa, churrasco do pescado. As folhas de taioba seriam refogadas para integrar uma farofa. A seca alterou os planos iniciais de uma colheita no campo.?
Mudinhas de beterraba, agrião e alface foram transferidas para a terra por um grupo da cidade, pessoas com pouca intimidade com a terra. Gente habituada a tomar os p?s de verdura nas mãos quando já estão em embalagens plásticas com códigos de barras e, não raro, higienizados e livres de rastros de terra.
Estavam ali por interm?dio do Farofa.la, plataforma criada no ano passado pelo engenheiro Andr? Melman e o advogado Mikael Linder para conectar quem gosta de consumir ingredientes produzidos em pequena escala com quem os produz.?
Levam grupos de 20 pessoas à propriedade de um produtor anfitrião para viver uma experiência rural-gastronômica. Pode-se passar um dia colhendo verduras orgânicas e ajudando a preparar um almoço coletivo. Ver cabras sendo ordenhadas em Joanópolis (SP) para a fabricação do chèvre cremoso do Capril do Bosque (esp?cie de queijo). E há experiências urbanas, como a de ser padeiro por um dia na Wheat Organics, na Vila Leopoldina.
"Minha relação com os pequenos produtores foi motivada por um problema de saúde que tive. Comecei a vasculhar quem eram. Queria entender o cuidado com a comida, a terra e os rios. Vi que serviam aos filhos o mesmo alimento que vendiam. Isso foi mudando a minha relação com a comida. Daí veio a ideia de conectar os produtores pequenos com o consumidor final", explica Melman, sócio do Farofa.la, onde há tamb?m uma seção dedicada à venda de produtos artesanais.
Mais que um passeio, uma fuga de São Paulo no fim de semana, boa parte das pessoas que chegam ali procuram informação. Uma forma de se conectar com a terra e extrair da experiência inspiração para mudar a relação com o alimento. "O Brasil está começando a acordar para esse movimento dos orgânicos, a prestar atenção aos nossos recursos, à questão da água, da energia el?trica e à necessidade de distribuirmos melhor as riquezas. Há três anos faço cerveja em casa, e isso foi um grito de liberdade para mim, uma fuga do mainstream", diz o engenheiro civil Marcos Cardoso, que participou da experiência em Piracaia com a mulher, a advogada Clarissa Cunha. "Estamos percebendo que não temos de consumir tudo o que está na prateleira do mercado. Temos de parar de agir como se fôssemos gafanhoto, consumindo e consumindo. E isso inclui a atenção com os pequenos produtores."
Clarissa se encarregou do trabalho de regar as verduras rec?m-plantadas no sítio de um dos anfitriões. Mais tarde, ela e o marido ajudariam a cortar os talos fibrosos de uma palmeira para amarrar os pacotinhos de peixe, enquanto os demais participantes se dividiam entre as outras tarefas necessárias para fazer o almoço: temperar a tilápia, lavar as verduras, cuidar da churrasqueira, pôr a mesa. Uma refeição colaborativa.
"Meu pai era tropeiro, eu tocava vaca. Fui criada assim. Mas as crianças perderam o laço com a origem. Vou abrir um centro de educação ecológica e comecei a garimpar planos de conduta. Não quero que tenham a ideia de que terra ? sujeira, e sim fertilidade", diz a veterinária Karina Araújo, que levou a filha, Helena Stanich, de 5 anos. "Para ela a novidade ? o contato com pessoas diferentes."
Por vezes o diferente está na simplicidade de comer uma fruta direto do p?, há quem garanta que tem outro sabor. Apostando nisso, o casal Douglas e Cintia Bello abrem as porteiras do sítio da família, em Paraibuna (MG), para receber visitantes. Entre as mais de 90 esp?cies de frutas brasileiras, especialmente nativas da Mata Atlântica, onde a propriedade fica, os turistas encontram cambucis, jaracatiás, grumixamas e pitangas. A próxima visita, promovida em parceria com a Escola Wilma Kövesi de Cozinha, inclui um almoço caipira num restaurante da região. "Muitos vêm por pura curiosidade. Mas há os que chegam por terem ouvido os avós contarem sobre essas frutas e tamb?m as que consumiam no mato, que trazem uma memória muito ligada à vida no interior", explica Cintia Bello.
Com objetivos parecidos com as do Farofa.la, de resgatar a relação com a terra e levantar as dificuldades e os cuidados necessários para fazer um p? de verdura vingar, nasceu o Expedições ao Leo. "Inicialmente queria levar uma turma para uma praia deserta, como eu fazia com meu pai. Viver a natureza e se alimentar dela. Quando íamos à praia da Caveira, em Ilhabela, acampávamos, pescávamos e gelávamos o vinho na cachoeira. Mas ? um projeto caro, inviável sem patrocínio. Ainda quero pôr em prática essa ideia inicial", relata chef Leo Botto, idealizador do projeto.
Em parceria com o Foodpass, o cozinheiro leva grupos para conhecer a fazenda Santa Adelaide, em Morungaba (SP), fornecedora de hortaliças orgânicas. Depois de um caf? da manhã, o agricultor David Ralitera, fundador da Santa Adelaide Orgânicos, conduz uma visita à horta. "O conceito ? o de volta às origens, e meu trabalho tem tudo a ver com isso. Mostrar os desafios de um pequeno produtor e aproximar quem trabalha na roça deste público que valoriza os ingredientes cultivados sem agrotóxicos", destaca Ralitera.
O Expedições ao Leo tem proposta mais sofisticada. Um cardápio caprichado preparado por Botto e harmonizado com vinhos da Zahil. Num fogo de chão, o chef assa legumes e peixes, para o próximo encontro a expectativa ? oferecer tamb?m linguiças artesanais de Bragança Paulista (SP) e costela de kobe beef grelhada. Quem quer ajudar pode. Mas não precisa. "Querendo ou não o desfecho ? o almoço. Preciso servir e servir bem, como se fosse um churrasco para os meus amigos", relata o chef, que usa legumes e flores da horta no preparo dos pratos.
"Quantas pessoas passam anos e anos sem nunca ter colhido uma cenoura? ? um contato importante para entender como uma plantação funciona, quanto tempo demora. O David nutre os convidados de uma forma muito bacana. Tudo o que tira da terra ele tenta devolver do melhor jeito, usando processos naturais para agregar nutrientes, se preocupa com o biodinamismo", afirma Botto. "Os convidados ficam bem surpresos, abre-se um novo universo. Saem dali pensando mais no assunto, tentando saber de onde vem o que consomem. Acho que essa ? uma ação importante para pequenas mudanças de hábito. A cozinha tem essa força, ? um veículo social de formação. Lento e necessário", conclui Botto.